No mundo do trabalho
sempre houve profissões de qualificações diferenciadas, mas todas de igual
importância para o necessário equilíbrio económico de qualquer sociedade. Na província,
como se convencionou chamar às regiões portuguesas situadas fora dos grandes
centros urbanos, as profissões dividiam-se primáriamente entre quem aprendia um
ofício (normalmente preenchido por pessoas já com alguma formação escolar ou
aptidões de índole vocacional) e os que, não tendo sequer frequentado a
instrução primária ou adquirido vontade própria para outros "voos",
eram "direccionados" para
trabalhos ligados à agricultura, onde uma provada robustez física determinava
favorávelmente os seus destinos profissionais !
Essa distinção, ou
separação se quisermos, da qual alguns eram defensores convictos, criava uma
certa clivagem social que acabava por se refletir em determinados aspectos da
vida das pessoas!
Este exemplo que o
nosso amigo Guilherme Afonso refere numa carta que me enviou em Junho de 2004,
sobre os então chamados "cangarinos",
é bem sintomático de uma forma de estar que marcou talvez uma geração e do
caminho que notoriamente ainda faltava percorrer para um necessário ajuste
social!
É claro que as pessoas
referenciadas no texto não são o mais importante, poderiam ser exactamente
outras de profissões idênticas! Apenas servem, como se compreende e ousando
colocar-me na posição do seu autor, para ilustrar uma situação social então
criada!
Começa assim a carta:
"Maputo, 21 de
Junho de 2004
Caro Amigo Manuel Gomes
Muito obrigado
pela sua carta de 12 do corrente, que li com muito gosto. E com mais gosto a
teria lido se tudo nela fossem só boas notícias e boas recordações. Mas a vida
é o que é, e se por um lado em alguma coisa pode depender de nós optimizá-la (e
pode, acho eu), por outro nada podemos fazer para travar o evoluir dos
acontecimentos. Podemos optimizá-la em função da nossa maneira de estar na
vida, coisa que não deixa de ser, por sua vez, naturalmente, o resultado de uma
série de circunstâncias em que fomos factores inteiramente passivos, começando
pela própria gestação e prosseguindo pela infância, em que sobre somos moldados
à imagem e semelhança dos que nos criam e dos que de mais perto nos acompanham.
Mas depois chega a altura de outras influências e de outros ambientes, e , aí,
tudo depende muito das pessoas que encontramos e dos locais que frequentamos,
coisa que, se até certo ponto depende dos acasos, não deixa também de contar
já, no entanto, com as nossas rejeições e as nossas escolhas, frutos
certamente, uma e outras, quer de factores genético-heriditários, quer da
maneira como até aí fomos tratados (educados).
Bom, meu amigo, quase sem dar por isso pus-me para aqui a filosofar. E tudo isso por estar a pensar no que me tem dito sobre o estado de saúde do seu pai.
Bom, meu amigo, quase sem dar por isso pus-me para aqui a filosofar. E tudo isso por estar a pensar no que me tem dito sobre o estado de saúde do seu pai.
... Ocorreu-me
um dia destes que o seu pai faz parte da geração dos “cangarinos”, mas ele não
era um deles. Pergunte-lhe se ele ainda se lembra disso. O Manuel Gomes é capaz
de nunca ter ouvido falar de tal coisa, já que a sua duração foi efémera. E
consistiu no seguinte:
Quando o seu pai tinha entre 17/20 anos, aos da sua geração que andavam a aprender um ofício ou que tinham acabado de aprendê-lo ainda há pouco tempo (pedreiros, carpinteiros, serralheiros, etc.) deu-lhes para se julgarem gente superior e entrarem numa de descriminarem os então chamados trabalhadores do campo (a classe bruta, como eles diziam), atitude essa que se tornou mais notória na organização de bailes só para eles e para as suas irmãs e namoradas. Ainda me lembro de um desses bailes ter sido realizado no que então era um celeiro do Barbosa, por baixo de onde era a escola primária (eu morava ali perto), e de ter visto alguns trabalhadores do campo, entre eles o António Cavaco, cá fora, a apuparem os “cangarinos”. E os “cangarinos” eram o Duarte Cruz, o Manuel Inácio, o João Nunes, o Abel Júlio, o Xico Braga, o Xico da Mariana, entre outros dessa geração. Mas isso passou-lhes depressa, e a geração seguinte, aquela a que já eu, mais ou menos, pertencia, não padeceu desse mal.
Não sei como é que surgiu essa designação de “cangarinos”, termo que nem encontro nos dicionários, mas que era uma designação engraçada, lá isso era.
Quando o seu pai tinha entre 17/20 anos, aos da sua geração que andavam a aprender um ofício ou que tinham acabado de aprendê-lo ainda há pouco tempo (pedreiros, carpinteiros, serralheiros, etc.) deu-lhes para se julgarem gente superior e entrarem numa de descriminarem os então chamados trabalhadores do campo (a classe bruta, como eles diziam), atitude essa que se tornou mais notória na organização de bailes só para eles e para as suas irmãs e namoradas. Ainda me lembro de um desses bailes ter sido realizado no que então era um celeiro do Barbosa, por baixo de onde era a escola primária (eu morava ali perto), e de ter visto alguns trabalhadores do campo, entre eles o António Cavaco, cá fora, a apuparem os “cangarinos”. E os “cangarinos” eram o Duarte Cruz, o Manuel Inácio, o João Nunes, o Abel Júlio, o Xico Braga, o Xico da Mariana, entre outros dessa geração. Mas isso passou-lhes depressa, e a geração seguinte, aquela a que já eu, mais ou menos, pertencia, não padeceu desse mal.
Não sei como é que surgiu essa designação de “cangarinos”, termo que nem encontro nos dicionários, mas que era uma designação engraçada, lá isso era.
... Por hoje
fico por aqui, mas acho que vamos ter muito que conversar, o que, naturalmente,
iremos fazendo paulatinamente, ao sabor do que nos for ocorrendo e do que é
caracteristico em quaisquer conversas: serem elas como as cerejas.
Um grande abraço
para si e outro para o seu pai. Cumprimentos para o resto da Família. O meu
filho António agradece e retribui o seu abraço.
Guilherme Afonso "
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